Era uma vez, Günther e Ute…

Era uma vez, Günther e Ute…

Kobe Beef é o bife mais caro do mundo.

A carne de que é feito, pecaminosamente suculenta e com o mais alto nível de entremeio de gordura, é considerada a melhor do mundo por causa do seu maravilhoso sabor, maciez, cor e textura… atributos pelos quais é mundialmente reconhecida, para além do seu preço de custo (pode chegar aos €500/Kg). Em termos nutritivos, é mais saudável do que outras carnes análogas, por ter mais Ómega 3 e por causa do alto teor de gorduras monoinsaturadas, que ajudam na redução dos níveis do mau colesterol. Uma refeição para uma pessoa, com uma porção de 100 gramas de Kobe Beef, custará no Japão entre €70 e €270 (…ou mais, já se sabe como estas coisas do mercado funcionam…). Um manjar dos deuses, extraído dos bois de quatro das raças Wagyu da linhagem Tajima, da região de Hyogo (Japão), cuja capital é Kobe. Só por se escrever estes nomes, uma pessoa já se sente umas centenas de euros mais rica. Os bovinos são alimentados e cuidados como lutadores de Sumô, como uns príncipes prontos a entrar na arena dos pratos para travar gloriosas batalhas com o nosso paladar… e vencê-lo por K.O.. Há relatos, verdadeiros ou não, de que são escovados com sake e alimentados com cerveja, para estimular uma maior deglutição de “grãos especiais” (faz-me lembrar aqueles “feijões especiais” que germinaram e cresceram até ao castelo do Gigante nas Nuvens, só que neste caso, a troca do bovino pela descoberta da galinha dos ovos de ouro não seria um bom negócio). Vegetarianos e ativistas deste mundo, queiram desculpar esta besta, mas eu gostaria de provar.

De todos os inquilinos com quem partilhei o apartamento durante o período que lá morei, Günther e Ute, o tal casal alemão com quem eu comi um caldo verde após a arriscada estória de amor em Deodoro, foram os que mais gostei. Considero-os como um Mike e uma Maika.

Günther e Ute são duas almas gémeas. Cumprindo uma tradição iniciada pelos dois em Pequim 2008 e que continuou em Londres 2012, deixaram os seus jovens filhos em Stadthagen (Noroeste da Alemanha, a cerca de 40km de Hanover) para assistirem, sozinhos, ao Rio2016. Chegaram no mesmo dia que eu (mas ao fim da tarde), e partiram 4 dias antes de mim (na manhã em que fiz uma expedição de 7h à Floresta da Tijuca). Logo que os conheci, no final do meu primeiro dia, senti uma empatia difícil de encontrar nos dias de hoje. Existe o mito de que os alemães são um povo frio, mas devo dizer que os vários alemães que até hoje conheci, são mais disponíveis e sem peneiras do que muitos portugueses. Poderá ter sido uma questão de sorte, mas todos exalam tranquilidade, qualidade de vida e confiança em si mesmos. E isso nota-se no trato pessoal, na forma como interagem com os outros. Günther e Ute não só são um exemplo do que acabo de dizer, como fizeram com que eu próprio me sentisse assim comigo mesmo. Quanto mais vividas as pessoas são, mais rapidamente percebem que não são o centro do Universo, e portanto, dão-se abertamente aos encontros imediatos de 3º grau com habitantes de outros sistemas solares.

O casal GÜNTHER falava um bom “portunhol”, mas com a típica textura áspera dos germânicos: as palavras, com gume rombo, arranham os balões de fala que as envolvem. Por causa da atividade profissional de Günther (diretor numa empresa multinacional da indústria automotiva), viveram em Portugal (zona de Cascais) durante 5 anos por altura do Euro2004, e outros 5 anos no México, tempos antes dessa ocasião. Pelo pouco que percebi deles, iriam certamente viver a médio prazo mais uns 5 anos em algum outro local deste planeta.

Ute, professora de natação, foi a minha principal companheira dos televisionamentos noturnos dos Jogos Olímpicos, a mais resistente ao sono. Com ela vi o Phelps entrar para a História (mais uma e mais outras vezes) e o Bolt a lançar quatro trovões à concorrência (que parecem vir sempre a 100 metros de distância), enquanto falávamos das vantagens da propriocepção no desporto (não da maior “consciência de si mesmo” que os atuais equipamentos propiciam aos corpos dos desportistas, mas do pouco “aconchego” que certos comités olímpicos dão aos seus atletas… como por exemplo, o comité olímpico português). Conheci poucas pessoas tão apaixonadas pelo espírito das Olímpiadas, como Ute o é. Günther é também um entusiasta dos Jogos Olímpicos, mas talvez por já ter morado perto do Restelo, tinha uma visão um pouco mais pragmática dos medalhados com o ouro do que eu e Ute.

“É tudo doping.” – dizia ele, esboçando um meio-sorriso enigmático de Mona Lisa, que nos deixava sem perceber se estaria a brincar ou não.

“Mas, e este atleta alemão que acabou de bater o recorde mundial dos 112 metros de obstáculos de sameira?” – lancei eu para o meio do ringue.

“Doping…” – afirmou – “…tudo doping.” – e voltava a bebericar o seu copo de vinho chileno sem manchar o sofá e a coerência, com a perna tranquilamente cruzada e cheia de certezas. Geralmente ríamos todos depois disso. Ele um pouco menos.

Falávamos de tudo um pouco, com um à-vontade próprio de desconhecidos com pouco de que se preocupar com o juízo dos outros. Confiança em si mesmos e empatia com os outros, digo eu. Falávamos das nossas impressões da Cidade Maravilhosa, do exagero apocalíptico dos media europeus (e não só) acerca da segurança no Rio (mas com um fundo inegavelmente verdadeiro, infelizmente), e de como isso poderia ter sido impeditivo à nossa viagem, e por conseguinte àquela mesma conversa naquele preciso momento. Falávamos também das coisas mais mundanas, como por exemplo, o conhecido facto sociológico de como uma ida ao MacDonald’s pode ser um barómetro económico seja em que país fôr, através do qual se compara o preço do seu Big Mac com o dos nossos países, relacionando a moeda local com as moedas estrangeiras, encontrando-se dessa forma uma taxa cambial mais rigorosa do que a mais competente e honesta das casas de câmbio. O que para mim até nem são cálculos fáceis de fazer, pois só sou consumidor de MacDonald’s de 10 em 10 anos, não por uma questão de princípios nutricionais, vegetarianos ou políticos, mas porque encontro sempre outras alternativas gastronómicas mais ao gosto do meu paladar. Mas, como quase toda a gente, eles apreciam bastante, principalmente a Ute. O único assunto que não quis forçar foi o das suas experiências enquanto moradores em Portugal, se calhar com receio de ouvir o que não queria, se calhar para não parecer que isso me importava demasiado (como geralmente acontece com os “tugas” quando estão com estrangeiros… o que até considero como sendo legítimo e natural, quando não acontece de forma exagerada: aí torna-se provincianamente bacoco), mas percebi que adoraram, naturalmente.

Foi com eles e com a Rose que vi a festa do Encerramento dos Jogos Olímpicos, no farol-apartamento, a 70 metros acima do nível do mar. Estava uma noite muito chuvosa e com ventos tão fortes que moviam os prédios como se Copacabana fosse um daqueles puzzles com quadradinhos de plástico duro, que sempre me faziam lembrar as chicletes Adams, com que brincava nos anos 80 (tinha um do “Pai Herói”, novela protagonizada pelo homem mais peludo do Universo: Tony Ramos).

Antes de ir para o Rio, sabia de antemão que não iria estar na festa de Abertura (mesmo que já lá estivesse, os preços eram incomportáveis e a lotação havia esgotado no período em que (des)esperei pela minha Escala de Atuação), mas tinha o “whisful thinking” de que eventualmente pudesse assistir ao Encerramento in loco, dentro do Maracanã (uma das poucas frustações que tive no Rio: não ter estado no Maracanã), nem que fosse por obra e graça de um punhado de “feijões mágicos”. O que até poderia ter acontecido, não pelo facto de ter hipóteses monetárias para o fazer (assistir ao Encerramento não é tão proibitivamente caro como assistir à Abertura, mas pouco falta), mas porque foi lançado um desafio por email aos voluntários que permitiu que 5 deles estivessem no centro da festa: havia que enviar uma foto que evidenciasse o espírito olímpico em pleno trabalho de voluntariado, num prazo de algumas horas. Não participei: a não ser na minha mente, não tinha captado nenhuma imagem que pudesse ser um forte candidato.

Mas no final das contas, foi tão agradável estar com aqueles “Three Amigos!”, confortavelmente quente e a salvo da intempérie, que não abdicaria desse momento. Rose fez-nos uma sopa espessa e quente, não de feijões, mas de ervilhas – “Gente, é de ervilhas mesmo, hein?!… Não é das enlatadas, não…!” – , servida nuns sopeiros individuais (com tampa e tudo) retirados do louceiro da “loiça boa”, com umas tostas finas repletas de sementes de sésamo a acompanhar. Uma iguaria que levariam o esperto frade inventor da sopa da pedra e mais as pessoas que o acolheram até aos braços do Gigante das Nuvens. No meio de um espetáculo incrível, tecnicamente a anos-luz daquele momento do Seu Jorge em 2012, selei um trato com o Günther e a Ute, um daqueles “Shots das Noites Anteriores”: iríamos estar juntos 4 anos depois, nas Olimpíadas de Tóquio. E o ponto de encontro seria na praça mais emblemática (Hachiko Square), no MacDonald’s mais perto que por lá exista.

Certa vez Rose levou-nos aos três a passear pelo Rio. Não fazendo parte das suas obrigações como anfitriã, proporcionou-nos um inesquecível percurso etnográfico de um dia inteiro, por toda a zona sul do Rio e todas as zonas circundantes – Copacabana, Botafogo, Humaitá, Lagoa, Gávea, Ipanema, Leblon, São Conrado e Barra da Tijuca -, fazendo de guia e contando as estórias e histórias desses bairros e do Rio de Janeiro em geral, relacionando-os com os acontecimentos da sua vida, tornando a experiência autobiográfica. Por mais mágico que um lugar possa ser, só nos conquistará realmente se estiver pejado de ocorrências emocionais, quer sejam nossas ou dos outros. Foi nesse passeio que marquei o dia e a hora do salto de asa delta. Ute ficou com vontade de saltar também, e não tenho dúvidas de que o faria se tivessem ficado mais uns dias no Rio. Quanto ao Günther? Nem pensar. “Eles não têm fatos do meu tamanho”, escusava-se ele. A Rose já tinha saltado há “muiiiito tempo atrás”, claro.

Fomos almoçar bastante tarde, por volta das 16h. E apesar de inicialmente termos planos de ir à Restinga da Marambaia comer peixe e marisco, os cerca de 80km de distância agitados com o nosso apetite no shaker do vórtice do Rio, resultaram num cocktail com um sabor diferente: à tal picanha na Gávea, com feijão preto, arroz e farofa com banana, com caipirinha e cerveja gelada a acompanhar. O almoço mais etnográfico e autobiográfico do Brasil (juntamente com a Feijoada Brasileira*), com o qual fiquei emocionalmente saciado.

* Feijoada Brasileira: a lenda popular afirma que o seu surgimento é mais ou menos parecido ao das “Tripas à Moda do Porto”, por ocasião da tomada de Ceuta: no tempo dos engenhos de açúcar, das fazendas de café e do garimpo do ouro, os fazendeiros ficavam com o melhor do porco, deixando para os escravos as partes restantes, que as enriqueciam cozendo-as com feijão, farinha de mandioca (ou de milho, ou de arroz) e legumes. Contudo, há quem desminta tudo isso, com base em registos históricos (que até referem que os produtos feitos com as miudezas do porco eram muito apreciados e valorizados) e no facto de que naquele tempo os escravos eram fundamentais para o desenvolvimento económico, e que por esse motivo eram bem alimentados (daí possivelmente a razão para a existência da laranja, também presente na feijoada brasileira, ao que parece por preocupações relativas ao escorbuto). É a tal questão, mito vs realidade. Relativamente consensual será a influência da gastronomia portuguesa na confecção desta e doutras iguarias.

Na hora de pagar, ainda mal começava a dizer que, em sinal de agradecimento, a Rose não teria de se preocupar em tirar a carteira do coldre, e o Günther já tinha disparado o cartão de multibanco para o empregado de mesa, pagando a despesa toda que fizemos no saloon. Fiquei um pouco sem jeito, e ainda insisti (não demasiado, pois detesto aquelas cenas deploráveis do “Não não, pago eu”, “Não, eu é que pago”, “A sério, deixe-me pagar eu…”, que por vezes até terminam da pior maneira), mas logo agradeci pela amabilidade, e tentei equilibrar a situação dizendo que as sobremesas ficariam por minha conta. Ao que Günther me disse: “Nicht, fazemos assim: em Tóquio pagas tu um Kobe Beef…!”. Toda a gente riu depois disso, até o empregado de mesa. Eu um pouco menos.

Esbocei um enigmático sorriso-inteiro de Mona Lisa, pois ele não estava a brincar. Se o Dia-A-Dia não nos fizer das suas, nos próximos 4 anos terei de ficar a pão e água, ou quando muito, a sopa de ervilhas, mas das enlatadas, com tostas ainda mais finas a acompanhar, sem sementes de sésamo.

 

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