O Rio é foda.

O Rio é foda.

Que me perdoem os puritanos, mas esta é a melhor forma de começar esta série de crónicas acerca do Rio de Janeiro. Através de uma expressão popular, esgravatada nas ruas para designar algo que ao mesmo tempo pode ser maravilhoso e implacável, sedutor e rude, belo e grotesco.

O Rio é mesmo foda.

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Se fosse animal era um gato, que nos ignora num minuto e pula para o nosso colo numa hora, que ronrona ao ritmo da bossa nova e rosna estilo “funk favela”. Se fosse mulher seria uma garota de 33 anos, cheios de curvas e contracurvas, que tanto nos diria sensualmente “Olá, tudo bom?” como também “Tchau!” virando a face para o lado oposto.

O Brasil não é um país, é um continente. É repleto de locais incríveis e uma cultura conhecida e reconhecida a léguas por todo o mundo. Mas nunca esteve em primeiro lugar na minha lista de prioridades como viajante, provavelmente por ignorância minha, ou quem sabe altivez de cidadão europeu armado em “primeiro-mundista”. Deixei-me disso depois de ver há uns anos o inspirador programa “Endereço Desconhecido II” na RTP2, do Tiago Salazar.

Mas o Rio de Janeiro… desde miúdo que sinto o Rio a correr nas veias. A música ritmada com ancas e tudo o mais, os chinelos a arrastar despreocupações pelo calçadão, o sol a descer a pique de asa delta, a areia fina e branca como açúcar em pó. Além disso, parte de mim tem muito de Zé Carioca.

As expectativas eram inevitavelmente muito altas, como quando vamos ver a nossa banda preferida num concerto depois de uma espera de décadas. Queremos que ela toque de forma irrepreensível, sem erros, de forma imaculada. E que ao mesmo tempo nos consiga surpreender, se é que isso é possível perante um fã tão conhecedor de todas as músicas, de todas as letras. Queremos que nos reconheça, nos acene, nos faça sentir o personagem principal dos seus temas.

Ora, imaculado é coisa que o Rio de Janeiro não é. O Rio é erro, nasceu do erro.

A minha chegada ao Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro, vulgo Galeão-António Carlos Jobim, foi uma bofetada nas minhas expectativas. O dia estava nublado, chegando até a chuviscar. A música que se ouvia era o “noise” industrial dos escapes dos milhares de carros e motas e suas buzinas. Os chinelos eram botas de cano alto que os militares afincavam no chão cinzento escuro, enquanto, preocupados, perscrutavam a multidão que ia chegando no aeroporto aos sacos de gente, com sacos e em sacos.

Muito cansado da viagem de 10h, na qual devo ter dormido 2h repartidas em pacotes de sobressalto de 15min. cada, a sentir aquilo que julgava ser treta mas que afinal é real, o jet lag, decidi-me a esperar que o dia aclarasse um pouco mais, antes de meter pés ao caminho na malfadada Linha Vermelha, dentro de um táxi amarelo, ambicionando um céu mais azul. A Linha Vermelha é a autoestrada que leva até à cidade os que chegam ao aeroporto, atravessando a parte Norte, por meio de dezenas de favelas bem “barra pesada”. A polícia ainda não as ocupou nesta zona do Rio, e as estórias macabras de “arrastões” que param o trânsito ao som de balas, com gente a fugir dos carros e a esconder-se nas bermas, são mais do que muitas.

Pedi uma coxinha de galinha (mítico!), um café (tamanho xxl!, que isso de expressos é lá prás europas), e afundei-me nos meus receios.

Por volta das 6:30 meti-me num táxi, o tal amarelo, esperando que não fizesse uma espécie de tour turístico que me esvaziasse a carteira. Não fez. A viagem foi limpa e o taxista um “bacana” (com um daqueles nomes impronunciáveis que só os brasileiros e os filhos de Djaló & Luciana Abreu têm), que me foi respondendo às perguntas que fazia para não pensar no que não devia. Lá fora havia betão e muito tijolo cru cozinhado na chapa, sobrepondo-se e acotovelando-se como um castelo de cartas pronto a cair em cima de mim e das construções imagético-mágicas que na minha cabeça ruíam. Por mais favelas que tenhamos visto na tv  ou no google, nunca perceberemos realmente o que são até as vermos a poucos metros, até as cheirarmos. Sim, porque o cheiro dos curtumes quando passamos perto de Aveiro é “pra meninos”, comparando com esta zona norte dos subúrbios da Cidade Maravilhosa.

Aos poucos a paisagem foi ficando mais amiga, os odores mais florais e adocicados, a linha foi perdendo a cor vermelha do seu nome e o verde tropical aumentando de tamanho. De forma surpreendente vejo o Cristo Redentor ao fundo, lá em cima. Uma imagem que sem aviso, estranhamente me fez sentir “em casa”.

Túnel após túnel, muito escuros, cheios de carros e motos apitando e fazendo trivelas entre o trânsito, escorregámos  até à zona sul por entre a Lagoa Rodrigo de Freitas (muito maior do que julgava: linda demais…) e os luxuosos prédios dos que lá moram. Apesar do céu acabrunhado, das gotículas a fazer rappel pelos vidros dos carros, consigo perceber de onde vem a luz do sol e seguir em sua direção.

De repente, já em Copacabana, estava à porta do “meu” prédio, do “meu” apartamento no 17º andar (que na realidade é o 20º, pois as garagens não estão na cave mas sim nos primeiros pisos). Subi por um dos elevadores, toquei à campainha e Rose abriu-me a porta.

E o sol finalmente apareceu. Calor.

 

 

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